Este blogue é cúmplice de um novo projecto literário: o romance Corpo sem Chão. Para aqueles cuja leitura de Almejado Retorno incitou curiosidade sobre o porvir, poderão ir testemunhando o desbravar de outras histórias: as histórias em que os personagens, desta vez, são fictícios, ou talvez não, dependendo da força das correntes que o romance levar. Convém, todavia, salientar que a forma como estas páginas romanescas são construídas encerra, por parte da sua autora, Aida Borges, a mesma paixão com que escreveu poesia...

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Horizonte mareante


Setembro de 2011
Frederico entra na sala de reuniões do serviço de Cirurgia do IPO de Coimbra, acompanhado de mais dois colegas, onde Catarina se encontrava para discutir a situação clínica psicológica de uma paciente sua. Era útil e indispensável que todos os elementos da equipa multidisciplinar estivessem presentes, no sentido de, juntos, encontrarem uma solução clínica que visasse o menor sofrimento físico e psíquico para aquela que iria ser amputada de um seio e vislumbraria a sua imagem corporal pervertida e ceifado o seu auto-conceito. O cirurgião responsável, Dr. Loureiro, apresenta o Dr. Frederico, que viria integrar a equipa cirúrgica a partir daquele dia.
Era impossível não dar pela presença de Frederico: homem de cerca de quarenta anos, porte elegante, alto, magro, cabelo curto castanho, salpicado por cabelos brancos que lhe conferiam um certo charme e um sorriso genuíno e encantador. Com o tempo, Frederico foi-se revelando também um homem humilde, calmo, seguro, simpático e sensível, perspicaz e admirável, muito persistente e com grande envolvimento emocional. Estas características não passaram despercebidas a Catarina. Sem se dar conta, aquele homem enchia-lhe o coração de uma ternura e uma admiração imensas que, a priori, poderiam não ser consideradas vulgares aos olhos de um observador comum, não fosse o facto de Catarina ser igualmente uma pessoa sensível e extrovertida, com muito afecto para partilhar com quem estivesse na disposição de retribui-lo. Com alguns limites, bem entendido, não vá o leitor pensar tratar-se de uma galdéria!
Descrevemos Catarina como uma mulher trintona, com aspecto de adolescente rebelde, inteligente, empolgante, viciada no trabalho e constantemente insatisfeita na busca da perfeição. De baixa estatura, olhos castanhos grandes e cabelos castanhos longos, exibia um sorriso e um olhar penetrante de um modo que o interlocutor dificilmente deixava de a notar sempre que se fazia presente. De espírito livre e independente, gostava de trabalhar em equipa e irradiava boa disposição, salvo raras excepções, quando o requinte e a mestria lhe fugiam do controlo. Impulsiva e imprevisível, gostava de inovar e não ficar presa à rotina, algo que a aborrecia imenso. Sabia ser um tanto incómoda e provocadora quando as coisas não lhe corriam de feição, pois considerava que todo o seu empenho deveria ser reconhecido e recompensado. Nem sempre assim sucedia e, ocasionalmente, a impulsividade e a impaciência vinham defumar a imagem encantadora que conquistava, com justiça e dignidade, junto daqueles que haviam sentido o prazer de cruzar-se consigo. Depois, ainda que ciente das suas capacidades e competências, revelava-se extremamente humilde, capaz de reconhecer os seus ímpetos e persistindo no resgate do perdão daqueles a quem supostamente beliscava. Era assim, e foi assim, com Frederico, como poderemos constatar ao longo da história.
Criativa, fazia um jogo de palavras que não era trivial. Francisco, seu namorado e com quem viera a casar, considerava que Catarina podia muito bem ser, para além de psicóloga e escritora, uma diplomata no Parlamento, considerando o seu dom da oratória. Bondade sua, pensava ela, que seguramente haveria de ficar tão ansiosa na hora de falar aos deputados que bloquearia com toda a certeza quando se sentisse o centro das atenções. Era, de facto, a ansiedade que a traía sempre. Em quase todas as situações.
Catarina e Frederico trabalhavam lado a lado havia cerca de três anos com um objectivo comum: melhorar a condição física e psicológica dos seus pacientes. E pode mesmo dizer-se que a sua relação laboral era extremamente aprazível, assente no respeito e dignidade do outro enquanto pessoa e profissional no seu ramo clínico.
Algum tempo após a chegada de Frederico ao serviço, este diz-lhe que vai ser pai. Na sequência de um parto algo conturbado, a sua criança acaba por ficar nos cuidados intensivos neonatais do Hospital Pediátrico de Coimbra durante alguns meses. Catarina nunca foi indiferente ao sofrimento deste pai, manifestando-lhe o seu apoio e solidariedade, fazendo-se sempre presente até ter recuperado, ao que Frederico sempre respondeu com gratidão. Daqui resultou uma evolução da relação de ambos, deixando para trás o estatuto de “conhecidos” ou de “colegas de serviço” para assumirem a condição de amigos.
Frederico acabou mesmo por ser convidado e testemunha do enlace matrimonial de Catarina e Francisco. E foi também espectador da sua funesta gravidez. Terá sido Frederico uma das primeiras pessoas a ter conhecimento do seu estado de graça. Assim como o foi quando o perdeu. E foi-o também quando Catarina publicou o seu primeiro livro poético, algo que tanto ambicionava e conseguiu consubstanciar. Frederico esteve sempre na vanguarda do seu horizonte, logo a seguir ao marido, que muito amava.
A história de Catarina e Frederico faz jus às palavras de Saint Exúpery: "Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós". Efectivamente, Frederico tinha deixado de si a Catarina, que ela albergou religiosamente, mas ainda assim não conseguia aceitar que ele não estivesse presente num momento tão importante para ela como o do lançamento do seu livro. Depois disso, uma sucessão de acontecimentos atiraram os dois protagonistas para uma situação se algum litígio. Foi nesta sequência de enredos que viemos a descobrir Catarina em frente ao clube de andebol onde Frederico viera a exercer Medicina do Desporto a tempo parcial.
Hoje é o seu dia de folga. A esposa, Marta, cedeu à condição laboral e a filha foi entregue aos cuidados da ama. Frederico sentiu necessidade de desfrutar de um tempo seu. Junto ao mar, sentia sempre uma paz de espírito indescritível: o vaivém das ondas não só trazia e levava memórias passadas como aspirações renovadas. Era sempre este cenário que procurava quando necessitava de alguma reclusão. Curiosamente, era também o local de eleição de Catarina, embora nunca aí tivessem estado juntos, como nunca estiveram juntos e a sós em lado nenhum. Mas conseguia senti-la.
O autógrafo imprimido no livro que a sua mão lhe ofertara remetia para o seu desejo em querer partilhar mais do seu sentir, mas cingia-se a oferecer-lhe o mais belo dos silêncios, o silêncio perfumado com o seu sorriso, adornado com profunda admiração e amizade sincera. Mas havia mais, havia muito mais nas entrelinhas, que Frederico se escusava a interpretar. Sentia que a ligação de ambos estava a tornar-se perigosa, motivo porque lhe havia pedido para se restringirem a uma relação profissional, a qual desde sempre se havia revelado muito leal e salutar. Esperava que assim continuasse.
Mas a lógica é traidora do coração sendo que este tem o dom de elevar-se no seu diálogo com a razão. Frederico duvidava que Catarina conseguisse manter-se à distância. Nem ele tampouco conseguia desvanecer o som que lhe ecoava nos ouvidos desde a última vez que a vira e lhe pediu para se afastar: “Gosto muito de ti”.
Frederico ergue o olhar que repousava nas palavras sedutoras de sua cativada rendendo-o à linha do horizonte mareante:
- Também eu, Catarina! Também eu gosto muito de ti! – mas isso, Frederico não podia confessar-lhe.

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