Setembro de 2011
Frederico entra na sala de reuniões do serviço de Cirurgia do IPO de Coimbra, acompanhado de mais dois colegas, onde Catarina se encontrava para discutir a situação clínica psicológica de uma paciente sua. Era útil e indispensável que todos os elementos da equipa multidisciplinar estivessem presentes, no sentido de, juntos, encontrarem uma solução clínica que visasse o menor sofrimento físico e psíquico para aquela que iria ser amputada de um seio e vislumbraria a sua imagem corporal pervertida e ceifado o seu auto-conceito. O cirurgião responsável, Dr. Loureiro, apresenta o Dr. Frederico, que viria integrar a equipa cirúrgica a partir daquele dia.
Era impossível não dar pela presença de Frederico: homem de cerca de quarenta anos, porte elegante, alto, magro, cabelo curto castanho, salpicado por cabelos brancos que lhe conferiam um certo charme e um sorriso genuíno e encantador. Com o tempo, Frederico foi-se revelando também um homem humilde, calmo, seguro, simpático e sensível, perspicaz e admirável, muito persistente e com grande envolvimento emocional. Estas características não passaram despercebidas a Catarina. Sem se dar conta, aquele homem enchia-lhe o coração de uma ternura e uma admiração imensas que, a priori, poderiam não ser consideradas vulgares aos olhos de um observador comum, não fosse o facto de Catarina ser igualmente uma pessoa sensível e extrovertida, com muito afecto para partilhar com quem estivesse na disposição de retribui-lo. Com alguns limites, bem entendido, não vá o leitor pensar tratar-se de uma galdéria!
Descrevemos Catarina como uma mulher trintona, com aspecto de adolescente rebelde, inteligente, empolgante, viciada no trabalho e constantemente insatisfeita na busca da perfeição. De baixa estatura, olhos castanhos grandes e cabelos castanhos longos, exibia um sorriso e um olhar penetrante de um modo que o interlocutor dificilmente deixava de a notar sempre que se fazia presente. De espírito livre e independente, gostava de trabalhar em equipa e irradiava boa disposição, salvo raras excepções, quando o requinte e a mestria lhe fugiam do controlo. Impulsiva e imprevisível, gostava de inovar e não ficar presa à rotina, algo que a aborrecia imenso. Sabia ser um tanto incómoda e provocadora quando as coisas não lhe corriam de feição, pois considerava que todo o seu empenho deveria ser reconhecido e recompensado. Nem sempre assim sucedia e, ocasionalmente, a impulsividade e a impaciência vinham defumar a imagem encantadora que conquistava, com justiça e dignidade, junto daqueles que haviam sentido o prazer de cruzar-se consigo. Depois, ainda que ciente das suas capacidades e competências, revelava-se extremamente humilde, capaz de reconhecer os seus ímpetos e persistindo no resgate do perdão daqueles a quem supostamente beliscava. Era assim, e foi assim, com Frederico, como poderemos constatar ao longo da história.
Criativa, fazia um jogo de palavras que não era trivial. Francisco, seu namorado e com quem viera a casar, considerava que Catarina podia muito bem ser, para além de psicóloga e escritora, uma diplomata no Parlamento, considerando o seu dom da oratória. Bondade sua, pensava ela, que seguramente haveria de ficar tão ansiosa na hora de falar aos deputados que bloquearia com toda a certeza quando se sentisse o centro das atenções. Era, de facto, a ansiedade que a traía sempre. Em quase todas as situações.
Catarina e Frederico trabalhavam lado a lado havia cerca de três anos com um objectivo comum: melhorar a condição física e psicológica dos seus pacientes. E pode mesmo dizer-se que a sua relação laboral era extremamente aprazível, assente no respeito e dignidade do outro enquanto pessoa e profissional no seu ramo clínico.
Algum tempo após a chegada de Frederico ao serviço, este diz-lhe que vai ser pai. Na sequência de um parto algo conturbado, a sua criança acaba por ficar nos cuidados intensivos neonatais do Hospital Pediátrico de Coimbra durante alguns meses. Catarina nunca foi indiferente ao sofrimento deste pai, manifestando-lhe o seu apoio e solidariedade, fazendo-se sempre presente até ter recuperado, ao que Frederico sempre respondeu com gratidão. Daqui resultou uma evolução da relação de ambos, deixando para trás o estatuto de “conhecidos” ou de “colegas de serviço” para assumirem a condição de amigos.
Frederico acabou mesmo por ser convidado e testemunha do enlace matrimonial de Catarina e Francisco. E foi também espectador da sua funesta gravidez. Terá sido Frederico uma das primeiras pessoas a ter conhecimento do seu estado de graça. Assim como o foi quando o perdeu. E foi-o também quando Catarina publicou o seu primeiro livro poético, algo que tanto ambicionava e conseguiu consubstanciar. Frederico esteve sempre na vanguarda do seu horizonte, logo a seguir ao marido, que muito amava.
A história de Catarina e Frederico faz jus às palavras de Saint Exúpery: "Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós". Efectivamente, Frederico tinha deixado de si a Catarina, que ela albergou religiosamente, mas ainda assim não conseguia aceitar que ele não estivesse presente num momento tão importante para ela como o do lançamento do seu livro. Depois disso, uma sucessão de acontecimentos atiraram os dois protagonistas para uma situação se algum litígio. Foi nesta sequência de enredos que viemos a descobrir Catarina em frente ao clube de andebol onde Frederico viera a exercer Medicina do Desporto a tempo parcial.
Hoje é o seu dia de folga. A esposa, Marta, cedeu à condição laboral e a filha foi entregue aos cuidados da ama. Frederico sentiu necessidade de desfrutar de um tempo seu. Junto ao mar, sentia sempre uma paz de espírito indescritível: o vaivém das ondas não só trazia e levava memórias passadas como aspirações renovadas. Era sempre este cenário que procurava quando necessitava de alguma reclusão. Curiosamente, era também o local de eleição de Catarina, embora nunca aí tivessem estado juntos, como nunca estiveram juntos e a sós em lado nenhum. Mas conseguia senti-la.
O autógrafo imprimido no livro que a sua mão lhe ofertara remetia para o seu desejo em querer partilhar mais do seu sentir, mas cingia-se a oferecer-lhe o mais belo dos silêncios, o silêncio perfumado com o seu sorriso, adornado com profunda admiração e amizade sincera. Mas havia mais, havia muito mais nas entrelinhas, que Frederico se escusava a interpretar. Sentia que a ligação de ambos estava a tornar-se perigosa, motivo porque lhe havia pedido para se restringirem a uma relação profissional, a qual desde sempre se havia revelado muito leal e salutar. Esperava que assim continuasse.
Mas a lógica é traidora do coração sendo que este tem o dom de elevar-se no seu diálogo com a razão. Frederico duvidava que Catarina conseguisse manter-se à distância. Nem ele tampouco conseguia desvanecer o som que lhe ecoava nos ouvidos desde a última vez que a vira e lhe pediu para se afastar: “Gosto muito de ti”.
Frederico ergue o olhar que repousava nas palavras sedutoras de sua cativada rendendo-o à linha do horizonte mareante:
- Também eu, Catarina! Também eu gosto muito de ti! – mas isso, Frederico não podia confessar-lhe.
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