Este blogue é cúmplice de um novo projecto literário: o romance Corpo sem Chão. Para aqueles cuja leitura de Almejado Retorno incitou curiosidade sobre o porvir, poderão ir testemunhando o desbravar de outras histórias: as histórias em que os personagens, desta vez, são fictícios, ou talvez não, dependendo da força das correntes que o romance levar. Convém, todavia, salientar que a forma como estas páginas romanescas são construídas encerra, por parte da sua autora, Aida Borges, a mesma paixão com que escreveu poesia...

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O chão debaixo de si

Dezembro de 2012

Francisco entregara-se à alvura do seu leito de solteiro passava já das quatro da madrugada. Já quase havia esquecido o quão singular era dormir naquele quarto. Desde que casara , havia mais de dois anos atrás, mudara-se para o leito matrimonial do quarto do lado, sempre que reconhecia a casa dos pais. Havia-os prevenido telefonicamente que viria, ainda no percurso de Coimbra/Bragança, mas havia-lhes dito também que talvez chegasse a Vilarchão muito tarde, para não esperarem por ele, e que lhe deixassem então a porta aberta.

O ponteiro do relógio ultrapassava as duas quando Francisco abandona a capital de distrito. Estava exausto e tinha ainda cerca de oitenta quilómetros pela frente. Não fosse o facto de ter prevenido os pais e da vontade de estar com eles, provavelmente hospedar-se-ia numa pensão por uma noite e ali ficaria para o dia seguinte. Assim, teria de voltar logo após o pequeno-almoço, que esperava ser agradável, na companhia dos seus simpáticos progenitores, ambos a rasar a casa dos setenta anos. Sabia que estes ficariam também muito felizes por vê-lo! Haveriam de querer saber uma série de coisas, nomeadamente sobre Catarina e a previsível e tão esperada chegada dos netos! Estes haviam também muito padecido com o primeiro malogro, pelo que desta vez os ânimos de todos eram muito mais comedidos! Ainda assim, notavam-se muito expectantes!

Tal como previra, à sua chegada os pais encontravam-se ainda despertos. Seria, para estes, impensável não acolherem o seu tão reverenciado filho! Não era todos os dias que o viam! E depois, estavam também muito curiosos em relação aos factos relacionados com o falecimento de Santa Amália. Faziam intenções de ir ao funeral no dia seguinte. Não se falava mesmo de outro assunto nas ruas da aldeia. Falava-se mesmo da possibilidade de a Câmara Municipal disponibilizar um autocarro para os interessados em participar nas cerimónias fúnebres. Os mais velhos consideravam um desperdício de verbas, uma vez que a dita Santa se havia desligado por completo das suas origens, das quais, ao que tudo indicava, sentia vergonha pelo seu passado. Era um tal frenesi que os poucos octogenários e nonagenários ainda no seu pleno juízo, não se cansavam de evocar memórias de acontecimentos e velhas histórias retratadas na época. Alguns manifestavam também vontade em ir, mais pela curiosidade, não fossem as suas pernas atraiçoa-los e portanto seria muito mais sensato ficar de guarda à aldeia, contando com os relatos daqueles que tivessem a boa-vontade e a paciência de contar os pormenores a um velho.

- Então meu filho, como tu estás? Parece que foste desenterrado! – que aos olhos de uma mãe, a preocupação é sempre algo exagerada – Tu tens fome? Queres comer alguma coisa?

Ao seu consentimento, Mavilde apressa-se a preparar um torrada nas brasas quase fenecidas da lareira de inverno e uma chávena de café com leite ao seu desabrocho, como na altura em que ele frequentava a casa como residente permanente. Muitas vezes se esquecia que o seu rebento tinha crescido e tinha já uma família própria. Fazia questão de primar por esses pequenos mimos, dos quais não prescindia, nem a favor da mulher com quem havia decidido partilhar o resto dos seus dias.

- Então conta-nos cá: como ficaram a Catarina e os nossos netinhos ? – questiona Ambrósio, pai de Francisco, com aquele brilho nos olhos que lhe era tão característico sempre que falava da família.

- Estavam bem antes de sair de casa, apesar de que Catarina está cada vez mais pesada e tem andado com as tensões descontroladas e com as pernas muito inchadas. Se bem que nos últimos dias tem estado melhor. Tem também sofrido muito com dores na coluna. Já são trinta e seis semanas…até às quarenta e duas podem nascer a qualquer momento, mas estou em crer que começaremos a mudar fraldas antes…- disse, carregando-se-lhe o semblante de imediato.

- Deves estar muito preocupado, filho, mas deixa que lá por ter acontecido o que aconteceu não quer dizer que agora aconteça de novo – disse a mãe, numa tentativa de lhe resgatar o sorriso.

- Claro, tem razão! Estou também muito cansado. A viagem foi longa e depois de um dia de trabalho!!!

- Olha lá, então e o velório, sempre lá estiveste? Muita gente, calculo! – Indaga o pai com muita curiosidade, enquanto Francisco absorve o café com leite quente e consome a deliciosa torrada preparada carinhosamente pela mãe.

- Para minha surpresa, nem por isso! Não mais do que um velório de um velhinho cá na aldeia! Tentei entrevistar algumas pessoas idosas que se encontravam no exterior e que se escusaram a tecer qualquer comentário no que toca ao passado da sua alegada santidade, talvez por respeito à sua memória. Os mais novos, esses nem sequer uma ideia faziam do que eu lhes estava a perguntar…deviam achar que era um louco!

- É natural Francisco! Nas cidades já se sabe como é! Não é como na aldeia que toda a gente sabe e quer saber a vida de toda a gente. A Santa Amália foi para lá há mais de sessenta anos, por volta de mil novecentos e cinquenta e poucos! E não voltou cá mais! Se perguntares a alguém de uma geração depois da tua se calhar nem nunca ouviu falar dela nem dos milagres que recebeu. Os do meu tempo, mal nos lembramos, éramos uns catraios. E os mais velhos ou já morreram ou estão caducos! - conjectura o pai de Francisco.

- Não viste lá a ti Joaquina e o ti Manel? Não sei se ela se dava muito bem com a irmã, mas não deixariam de ir numa hora destas… - supõe Mavilde.

- Não, não os vi. Provavelmente só irão ao funeral.

- A propósito, amanhã tínhamos intenções de ir. Vamos dar boleia à ti Francisca e ao ti António. Falam até que vai haver uma carreira que a Câmara pôs ao dispor para quem quisesse ir, mas nós cá levamos o nosso carro para irmos e virmos quando nos apetecer – declara o pai que se encaminha na direcção da porta que dá acesso às escadas para o seu quarto no primeiro andar.

- Também não sei se a carreira encherá – afirma a mãe. – É tempo de azeitona e está muito frio. Há bocado quando fui ao terço, que se rezou pela alma dela, não me pareceu que as pessoas estivessem muito entusiasmadas. E as que forem, só devem ir pela curiosidade!

- Já se passaram muitos anos, Mavilde! Era o que eu dizia há pouco! Achas que as pessoas largam os seus afazeres para irem ao funeral de uma pessoa que nem conheceram e que, segundo se consta, tudo o que aconteceu não passou de uma farsa?

- Não sei que te diga Ambrósio, mas lá que alguma coisa houve, houve! E tu conheces as histórias tão bem como eu de o meu pai e os do tempo dele as contarem – lembra Mavilde, evocando a memória do ti Zé das Estevas.

Francisco termina a sua bebida quente e de estômago mais confortado, alegando um enorme cansaço, despede-se dos pais declarando que partirá de novo para a capital brigantina logo após o pequeno-almoço. Teria que se encontrar com um seu colega e amigo, da Rádio Brigantina, com quem iria almoçar antes de fazer a cobertura das cerimónias fúnebres de Amália. Com isto, o relógio por cima da lareira já havia batido as quatro.

Cerca das sete e pouco da manhã, ao rugir dos tractores que se encaminhavam para as terras olivícolas para a apanha da azeitona, Francisco acorda sobressaltado por uma angústia difícil de descrever. Dá-se então conta que no seu cansaço e empolgamento com o falecimento de Amália, se havia esquecido de colocar a bateria do seu telemóvel a carregar e de desejar as boas noites a Catarina. Num ímpeto, salta do leito e liga o aparelho à corrente. Mal o código é reconhecido e o dispositivo começa a tocar, reconhecendo o número de Catarina no visor:

- Olá amor…desculpa, fiquei sem bateria e já cheguei a casa dos meus pais muito tarde: não te quis acordar! - desculpabiliza-se Francisco antes de ser bombardeado com cobranças por parte da mulher, que adorava, é certo, mas que sabia ser um tanto provocadora e inconveniente quando as coisas não lhe corriam de feição.

- Francisco, sou o Frederico! – identificou-se, um pouco constrangido.

-Frederico?!!! Mas o que é que tu estás a fazer com o telemóvel da minha mulher? – questiona Francisco, num tom visivelmente irritado.

Sabia que Frederico e Catarina nutriam uma relação especial e chegou muitas vezes a sentir ciúmes deste pelo cuidado que a mulher lhe dedicava sem razão aparente! Ou talvez até houvesse razão, dúvida que o consumia intimamente, mas que nunca tinha conseguido esclarecer. Lembrava-se de um dia os ter encontrado à saída de um café perto de casa, num abraço muito cúmplice, mas ambos haviam sempre negado qualquer luxúria que pusesse em causa os seus enlaces matrimoniais. Marta, a mulher de Frederico, havia sentido o mesmo numa ocasião em que detectou mensagens de Catarina, a seu ver comprometedoras, no telemóvel do marido. A sua reacção veio mesmo a abalar, na altura, a relação entre Catarina e Frederico. Mas o que ambos sentiam em relação ao outro era muito consistente e, mesmo sem nunca haverem apunhalado libidinosamente os respectivos cônjuges, tanto Marta como Francisco se sentiam traídos.

- Francisco, não é hora para agressões! Catarina e eu passámos a noite a contactar-te! Tens que vir imediatamente para cá, estejas aonde estiveres! Os teus bebés precisam de ti! – Ordena Frederico num tom aparentemente calmo e resoluto.

- O que é que se passa com os meus filhos?

- Vem rapidamente! Os vossos filhos nasceram e estão bem…ao cuidado das enfermeiras - Frederico fez uma pausa. Não sabia como informar o seu alegado rival de uma fatalidade que o consumia também a ele…

- E Catarina? O que se passa?! – e ouvindo silencio do outro lado da linha - Fala Frederico!!! – Grita Francisco, que começa a sentir o chão a ondular debaixo de si…

- Está em coma… - disse, com um nó na garganta que só começou a consumir -se depois de desligar a chamada e de as lágrimas lhe impregnarem o rosto. Terá sido uma das poucas situações em que Frederico chorou.

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