Este blogue é cúmplice de um novo projecto literário: o romance Corpo sem Chão. Para aqueles cuja leitura de Almejado Retorno incitou curiosidade sobre o porvir, poderão ir testemunhando o desbravar de outras histórias: as histórias em que os personagens, desta vez, são fictícios, ou talvez não, dependendo da força das correntes que o romance levar. Convém, todavia, salientar que a forma como estas páginas romanescas são construídas encerra, por parte da sua autora, Aida Borges, a mesma paixão com que escreveu poesia...

domingo, 25 de setembro de 2011

Os primórdios do sagrado

Meados de 1945


Descobrimos José Manuel das Estevas, apelido herdado de seu padrasto, pastor que largava cabras a apascentar em densos campos de estevas de onde colhia o ládano, resina aromática, que era posteriormente exportada para a alta perfumaria francesa.

José Manuel das Estevas, dizia eu, mais conhecido por ti Zé, homem dos seus sessenta anos, calvo e franzino, mas cheio de genica, capaz das maiores bravuras para impressionar os jovens rapazes da aldeia, era frequente encontrá-lo a tagarelar com os seus vizinhos e companheiros de jornada no café do largo, que herdou de seu sogro e manteve durante mais de vinte anos. Nas horas de estio, enquanto a maior parte dos aldeões se entregava à sesta, lá se encontrava ele conversando e jogando sueca com o António, o Jorge e o Armando, apenas este ainda sem o prefixo “ti”, antes de ir para o campo regar a horta e cuidar dos animais ao fim da tarde. Armando, solteirão dos seus trinta e poucos anos, deliciava-se com as histórias contadas pelo ti Zé do tempo da Primeira Grande Guerra, tinha este cerca de trinta e três anos, lembrava-se bem! E tinha lembranças vívidas do fenómeno de Fátima, em 1917, época em que a religião e a guerra caminhavam a par, pelo menos em terras lusitanas, na altura governadas pelos tronos de Afonso Costa e posteriormente de Sidónio Pais. Política e religião eram, efectivamente, os temas preferidos do ti Zé, e quando não era Armando ou algum catraio a questioná-lo, tomava a liberdade de trazer o assunto à mesa, entre ases, biscas e, como dizia, “senas tristes”!

Em plena década de 40, época de recessão política e económica após o primeiro decénio de ditadura em Portugal (1927-1936), o povo português era posto à prova perante o mais terrível espectáculo humano: a fome. Os bens alimentares não estavam ao alcance de todos: as receitas dos negócios da guerra entravam nos cofres do Estado, nas contas das empresas ou nos bolsos dos comerciantes, mas muito longe dos olhares do povo. As carências levavam as autoridades a lançar uma vasta campanha de poupança, seguida pela população à medida que se ia sentido a falta de mantimentos e a subida em flecha dos preços, agravados pelas más colheitas de 1940 e 1941. Slogans como “Consuma o indispensável, não desperdice!”; “Não pense apenas em si, gaste o menos possível para que chegue a todos o pouco que temos, seja justo, poupe!”, “Evitar o desperdício é contribuir para o bem da Humanidade”, “Poupar é a ordem!”, “Capoeira povoada é riqueza amealhada” e “Todos os que podem a favor de todos os que precisam”, dominavam as ruas numa tentativa de sensibilização da população à economia e de evitamento dos racionamentos que o Governo salazarista hesitava em decretar. Em 1942 a fome atingia as famílias operárias das concentrações industriais e dos assalariados rurais. Salazar congelava então os salários impedindo que acompanhassem a inflação: o salário agrícola passava a valer em média um quinto de há vinte anos atrás.

Um inquérito sociológico do Instituto Nacional de Estatística dava conta que na altura toda a refeição se baseava em broa com três ou quatro sardinhas salgadas, duas tigelas de caldo de legumes secos ou hortaliça, eventualmente umas azeitonas com massas de farinha de milho, quando, principalmente no Verão, faltava a hortaliça. Se o trabalhador tinha alimentos proteicos, como leite ou ovos, preferia vendê-los a comê-los, trocando-os por pão.

Entre 1942 e 1944 relatavam-se as maiores greves e manifestações de protesto laboral de que havia memória na ditadura: populações representantes um pouco de todo o lado do país, incluindo em Terras do Demo, formava motins contra as requisições de cereais pelo Estado, a falta de géneros alimentícios e, em alguns casos, a perseguição à recolha e venda ilegais de volfrâmio. Em 1943, Salazar cedia finalmente ao racionamento de bens essenciais que até ao momento existia apenas para a gasolina e a electricidade. Todavia, os produtos racionados rapidamente eram esgotados ou simplesmente tardavam em chegar pelo que não se mostrava uma solução eficaz para a crise. Em Vilarchão, os que trabalhavam colhiam as couves, os tomates e as batatas, o azeite para untar as batatas, e as mulheres faziam o pão, de centeio quando não havia trigo. Os outros, os que não tinham terra para trabalhar ou se entregavam ao ócio, lá contavam com a côdea de pão que aqueles lhe entregavam por caridade, como quem dizia, “pelas almas que lá tenho”. Mas havia ainda os filhos da terra que encontravam na emigração uma forma de resgate.

- Ó ti Zé – questiona Armando enquanto lança um Ás de espadas na mesa – mas então quando vem o Sebastião lá da França?

- Deve vir lá para o primeiro de Agosto, já se sabe! Traz a “mademoiselle” para mostrar cá à malta, o lafrau! Cada ano traz uma diferente! Vá lá ver! Se isto pode ser! Mas lá que faz inveja aos rapazes cá da terra, lá isso faz – risos matreiros, caçoando de Armando – O gaiato até tem bom gosto, cada uma mais guapa que a outra! – lança um terno por cima do Ás – Também não levas nada, mas vai-te contentando com esse que eu cá te espero!

- Gaiato? O Sebastião? Está já bem casadoiro! – Observa o ti Jorge, homem de barba farta e grisalha, dos seus cinquenta e muitos anos, cortando o Ás com um Valete de ouros – qualquer dia aparece aí com um catraiozinho ao colo que é um mimo! O ti Zé que se cuide, não vá dar de caras com um pirralho a chamar-lhe avô não tarda nada!

- Avô, eu? Então que é isso?! O meu Sebastião é um homem sério! Lá por andar com esta e com aquela não quer dizer que lhe falte ao respeito, ouviste? – Retorque o pai em defesa do rapaz! Que um pai, já se sabe, defende sempre o filho.

- Já tenho saudades do meu amigo! Há um ano que o não vejo! Se ao menos ele arranjasse a cá ficar!

- Ora, ora! Tu estás bem da cabeça, rapaz? E onde e como é que o meu Sebastião vai ganhar a vida? A plantar batatas e a enxotar os bois para lavrar a vinha e as oliveiras?

- Pois então, não é o que todos os rapazes cá da aldeia fazem? – Questiona o ti António, homem septuagenário de poucas falas, cobrindo o Ás e o Valete com o Rei de ouros – estes são meus. Tomem lá agora… - lançando a bisca de paus, pois já tinha arrecadado o Ás numa jogada anterior.

- Pelo modo como as coisas rolam isto vai de mal a pior! Vós não tendes a noção do que para aí vem! A tirania de Salazar não perdoa!

- Cala-te homem, que ainda te prendem! – repreende a mulher, Fátima, sexagenária que, por detrás do balcão da taberna, não se contém em se meter na conversa dos homens.

- Estamos entre amigos, ó mulher! Deixa-me cá!

- Já que aí está a tua dama de copas, Ó Zé, pede-lhe aí para servir um tintinho! – sugere o ti Jorge, que começa a sentir a garganta seca.

- Eh Jorge! Cuidado com a língua! Mas não seja por isso…venha daí esse tinto, ó mulher!

A ti Fátima ignora o comentário do outro e, enchendo os copos, prossegue:

- A verdade é que só de há dois anos a esta parte um quilo de arroz aumentou de 3$50 para 4$80, e o açúcar de 3$60 para 4$20! O meu Zé que se cuide senão vai ter de começar a comer as sopas de leite amargas! Não fosse o meu Sebastião a mandar uns trocados para cá de dois em dois meses, queria ver como era! Isto está mal, valha-me Nossa Senhora! – afirma a mulher do ti Zé, limpando o balcão.

- Ó ti Fátima, mas então o vinhito não dá para cobrir as despesas?

- Não fossem os cães que nos pregam, Armando! Eu bem digo que não vendo fiado, mas tu não vês?! Esta gente não tem como pagar! Está pior que nós! O que nos vale é que com o rebuliço que cá vai na aldeia por causa da Santa, de uma pipa de vinho faz-se sete e vende-se tudo num dia! Vai dando para o gasto!!! – anima-se Fátima.

- Então não vai mal o negócio ó Fátima! Também estás sempre a chorar! – caçoa o ti António…

- Não fosse a criação de galinhas e coelhos, galinhas, patos e porcos dentro de casa, haveria muita gentinha de comer pão seco! Cá na nossa terra ao menos ainda se vai fazendo p’la vida! Com muito custo, é certo, mas vai! - adita o ti Jorge, enquanto lança o Rei de paus na sua jogada – Vai nosso ó Tonho? Aí vão mais uns tentos!

- Estais mal habituados camaradas! Os cães vadios começam a escassear nas ruas, digo-vos eu! Eh, eh! Em tempo de guerra sabem como cabrito!!! – Ora não queríeis mais nada! Tomai lá! - Batendo com um trunfo e arrecadando pontos.

- Zé, toma conta da tasca que eu vou à missa! – Avisa Fátima, desapertando o avental.

-Tu estás doida, ó mulher? E quem é que vai regar a horta? – questiona o ti Zé, indignado!

- Tu, mais os teus amigos da jogatana! Eu vou mas é rezar, para ver se Deus e a Santa te dão algum juízo! – afirma, preparando-se para virar costas!

- Olha o respeito, ó Fátima! Andas a abusar e olha que eu qualquer dia perco a cabeça! – Escarnece Zé, piscando o olho ao parceiro – Ganhámos ó Tonho! Por ora chega, que se faz tarde para os feijões!

- Serve mas é mais uma rodada à malta antes de abalarmos! Pagas tu, Jorge, já que perdeste! – diz o ti António.

- Eu cá acho que as cartas estão viciadas a favor do dono da taberna, ó Tonho! – tenta defender-se o ti Jorge.

Os outros riem-se e levantam-se para arredar pé, quando o Xico, catraio dos seus oito anos, entra porta dentro numa correria ofegante e apregoando:

- Ó ti Zé, ti Zé! Depressa, depressa! Venha ver!!! Rápido!!!

E os quatro apressam o passo, alarmados e expectantes, sem uma parca ideia de com o que se iriam deparar!

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