Este blogue é cúmplice de um novo projecto literário: o romance Corpo sem Chão. Para aqueles cuja leitura de Almejado Retorno incitou curiosidade sobre o porvir, poderão ir testemunhando o desbravar de outras histórias: as histórias em que os personagens, desta vez, são fictícios, ou talvez não, dependendo da força das correntes que o romance levar. Convém, todavia, salientar que a forma como estas páginas romanescas são construídas encerra, por parte da sua autora, Aida Borges, a mesma paixão com que escreveu poesia...

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O princípio do fim

Dezembro de 2012

Francisco oferece a chave à fechadura da porta de casa e encontra a mulher a dormitar no sofá da sala. Catarina acorda com um doce e terno beijo nos lábios, aquele a que sempre se habituou por parte do marido. O corpo pesado com muita dificuldade a deixa soerguer-se. As 36 semanas de gestação gemelar haviam-lhe limitado consideravelmente a sua desenvoltura.

-Então amor, como foi hoje no jornal?

- Tenho uma notícia macabra e simultaneamente fabulosa para o meu romance! Nem vais acreditar!

- Conta-me depressa! – disse, entusiasta.

- Soube através da internet que os órgãos de comunicação de Bragança noticiam a morte de Santa Amália. Tenho de ir rapidamente para lá…vou arranjar o saco e vou ligar aos meus pais a dizer que vou…

- Mas…amor, e nós? – questiona sobressaltada.

- Tu não podes ir nesse estado…os nossos bebés podem não aguentar a longa viagem!

- E deixas-nos sozinhos? Achas bem? – Profere Catarina indignada enquanto se ergue abruptamente do sofá e se encaminha célere e irritada para o quarto dos filhos.

- Amor, sabes quão importante para mim e para o meu romance é a cobertura deste evento, não sabes? Tens noção do significado disto? Esta é a história do tempo dos meus avós, dos meus tios avós, dos meus antepassados…sabes como me tenho dedicado nos últimos meses à pesquisa de todas as narrativas rocambolescas associadas à Santa Amália de Vilarchão. Talvez este seja o culminar que necessito para o meu romance. Não dizes que nunca mais termino para o publicar?

- Mas agora?!!! Tens noção que os teus filhos podem nascer a qualquer momento? Não vais querer estar presente quando isso acontecer? Não bastou a tragédia que nos aconteceu da primeira vez e agora vais querer deixar-me sozinha? Isto não pode estar a acontecer! – Afirma com voz trémula contendo as lágrimas.

- Catarina, não posso perder esta oportunidade. Tenho de perceber o impacto da morte da Santa nas gentes e no local onde ela nasceu e onde se deu o suposto milagre. O funeral é amanhã ao início da tarde. Por favor, compreende que tenho que ir…

Francisco tenta abraçar carinhosamente a mulher que o sacode decidida.

- E não podes seguir a cobertura dos órgãos de comunicação locais? – questiona, elevando o tom de voz - Eu posso falar com o meu amigo jornalista da Brigantina para te manter informado…

- Não é a mesma coisa Catarina. Por favor, entende! Espero que me perdoes, mas vou fazer o saco e sigo já viagem! Se o processo de nascimento dos gémeos se der, ou se não te sentires bem, ligas-me e eu venho a correr. Até lá, deixa-me fazer o que tenho que fazer!

- A quase trezentos quilómetros de distância?!!!

Catarina emitiu um suspiro de desânimo perante o que considerava teimosia do marido e que já se encontrava no quarto a recolher um par de calças, duas camisas, uma camisola e roupa interior para dentro de um saco de viagem. Na verdade, tinha realmente a noção da importância deste acontecimento. E se sucedesse algum imprevisto relacionado com os gémeos haveria certamente de encontrar uma solução! Sempre assim fora ao longo da sua trajectória pessoal: não dependia de ninguém para resolver os seus próprios problemas. Mas agora não eram só os seus, eram os seus e os dos seus dois rebentos que estavam para chegar, e ela teria de reunir força e motivação para três, mais ainda se Francisco não estivesse ao seu lado! De repente, assustou-se com as memórias da sua primeira e mórbida gravidez. Mas não podia ficar presa no passado: desta vez, tinha de ser diferente!

Francisco, de saco ao ombro, beija apaixonadamente a sua esposa: um beijo tão longo e arrebatado numa euforia que se poderia adivinhar à distância da lua.

- Perdoa-me meu amor! Amanhã estarei perto de ti…

- Não é a mim que tens de pedir perdão, mas aos teus filhos…

- A eles também, é claro! Em breve estaremos os quatro juntos e formaremos a mais feliz das famílias. Mais feliz que a Sagrada Família – disse, com um sorriso caçoado, olhando de soslaio para as figuras infantis do presépio que ambos haviam aparelhado no quarto dos rebentos nesse fim-de-semana.

- Volta depressa meu amor – acabou dizendo, com um sorriso triste e pouco convincente.

- Volto sim. Quando regressar, ainda temos a Árvore de Natal para armar… Até amanhã! Amo-vos muito!

- Também te amamos…

Francisco abala quando o relógio bate as 18:00 dessa tarde invernosa e intempestiva. Não tanto quanto a mágoa que Catarina carrega no peito, tornado o seu corpo ainda mais pesado. Haveria de sentir-se mais aliviada, depois de descansar um pouco antes de ir jantar. Adormece ao som de uma música natalícia que se faz ouvir do andar de cima. De vez em quando, a jovem moradora perde a noção dos decibéis que atravessam as suas paredes. Mas a tonalidade, desta vez, era agradável e Catarina tinha outro tipo de preocupações, pelo que acabou por se deixar embalar e entregar-se ao sono e ao cansaço.

Eram já 21:30 quando Francisco dá conta da sua chegada a Bragança. Aparentemente estava sedento e com fome, pois nada tinha comido com o entusiasmo de chegar rapidamente. Catarina também não havia jantado nessa noite. O corpo e o ânimo pesavam mais do que o habitual na ausência do marido e a fome era, pelo contrário, muito leve. Francisco informa que vai ingerir uma sandes num café brigantino próximo do local do velório. Só depois visitaria o corpo defunto e regressaria à casa paterna para repousar uma horas. Durante a viagem ocorrera-lhe imaginar como seria o caixão e como seriam as cerimónias fúnebres.

Meia hora depois e após cumprir uma leve dieta, Catarina entrega-se à ficção televisiva. Não achando entusiasmo nos programas em curso, decide rever um dos filmes que mais a inflamou nos seus tempos de juventude. Message in a Bottle ou As Palavras que Nunca te Direi, sempre perduraram nas memórias do seu imaginário. Nunca havia percebido porque o protagonista tinha de morrer no final da história. Mesmo quando, passados anos após o primeiro visionamento do filme, leu o livro no qual o projecto cinematográfico se inspirou, prosseguiu sempre na expectativa de que ele vingaria na tempestade das ondas e faria sobreviver o amor. Mas não! Na ficção, como na realidade, Catarina achava o mundo injusto e impróprio às especulações de carácter emocional. Esperava que doravante o destino fosse mais doce, contrariamente ao que se lhe havia patenteado até ao momento. E nunca desistia de acreditar!

Perto das duas da manhã, Catarina acorda sobressaltada, contorcendo-se com dores no leito molhado. Várias tentativas vãs de apelo a Francisco deixaram-na aterrada pelo que só lhe restou uma alternativa: ligar a Frederico. Talvez ele estivesse de serviço nessa noite.

- Frederico, ainda bem que te encontrei! Estou sozinha e acho que os gémeos vão nascer. O Francisco não me atende o telemóvel – profere numa voz ofegante e entrecortada pela dor.

- Catarina, tem calma! Vou ligar ao INEM – Responde Frederico do outro lado da linha, não menos assustado do que ela. – Estou de banco mas vou ter contigo à Maternidade.

- Certo. Obrigada Frederico. Sabia que podia contar contigo! – disse, num tom mais suave.

Em pouco mais de meia hora Frederico encontrava-se junto de Catarina na Urgência da Maternidade, naquele ambiente sempre assustador, denegrido pelas memórias que lhe assaltavam o pensamento.

- Desta vez vai correr tudo bem, Catarina! Tens de acreditar nisso! Nunca desististe e agora também não é o momento!

- Eu sei! Mas o Francisco não me atende! Maldita hora em que ele foi viajar! Parece que eu estava a adivinhar que isto ia acontecer! – afirmou, com as lágrimas a saltarem-lhe das órbitas.

A enfermeira anuncia que terá de se preparar para entrar no bloco de partos. A ansiedade aumenta avassaladoramente. É visível o terror emocional de Catarina, agravado pelas dores cíclicas, que a fazem contorcer na maca onde se encontra estendida.

- Entra comigo Frederico! – pede, carinhosamente, já mais aliviada.

- Não posso!

- Porquê? Tu és médico…e além disso preciso de ti!

- Não posso Catarina! Este é um momento do Francisco, não meu! Ele é que é o pai do Dinis e da Lara.

- Mas o Francisco não está! Preciso de ti! Permito que os meus filhos sejam também um bocadinho teus, da mesma forma que me permitiste a mim quando o Martim me deixou! Por favor! – Implora, de um modo que Frederico quase cede!

- Ouve Catarina: não é correcto que te acompanhe neste momento! E além disso alguém tem que contactar o teu marido e a tua família! Eu faço isso por ti! Agora tens de concentrar todas as tuas energias nos teus filhos…

- Fica com o meu telemóvel e faz os contactos que achares necessário. Vou sentir tanto a vossa falta!

- Não Catarina! O que vais sentir é muita força e muito entusiasmo porque dentro em breve terás os teus merecidos rebentos nos teus braços: tudo aquilo por que tanto lutaste, lembras-te?!!! Eu fico a torcer por vocês cá fora! Em breve irei visitar-vos aos três! – Disse Frederico, visivelmente emocionado, enquanto pousa um terno beijo na fronte da amiga.

Nesse momento, o telemóvel de Catarina é confiado a Frederico e ela é encaminhada, consternada e simultaneamente exultante, para o bloco operatório.

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