Este blogue é cúmplice de um novo projecto literário: o romance Corpo sem Chão. Para aqueles cuja leitura de Almejado Retorno incitou curiosidade sobre o porvir, poderão ir testemunhando o desbravar de outras histórias: as histórias em que os personagens, desta vez, são fictícios, ou talvez não, dependendo da força das correntes que o romance levar. Convém, todavia, salientar que a forma como estas páginas romanescas são construídas encerra, por parte da sua autora, Aida Borges, a mesma paixão com que escreveu poesia...

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

No corredor do desespero

Dezembro de 2012

Nessa manhã, Francisco havia deixado os gémeos à guarda da mãe de Catarina para a ir visitar ao seu leito mórbido. Haviam-se passado cerca de setenta e duas horas desde que sua esposa se entregara às trevas e vinte e quatro desde que começaram a correr os primeiros rumores de que a equipa médica iria iniciar os testes para confirmar a sua morte cerebral. Era aterrorizante! Começava a sentir o chão a fugir debaixo de si, sem o poder acompanhar. Não havia pregado olho nessa noite. O que iria ser dos seus filhos sem a mãe!

Os ponteiros do relógio ainda não haviam atingido as seis quando Francisco se ergue do seu leito matrimonial, banhado em sal. Exceptuando os instantes em que mudou fraldas e aqueceu biberões, com os bebés ao colo, passara a noite a recordar os suspiros de prazer que a mulher lhe havia suscitado e que ele havia igualmente injectado naquele que era o seu ninho de amor. Não conseguia imaginar, e muito menos aceitar, que a partir daquele dia tudo se resumiria a memórias. Cada “amo-te” passaria a ser uma melodia de funestas recordações cujo timbre tocaria o seu coração como agulhas que o fariam sangrar até ficar exangue. Era tudo muito aterrador! No centro de um furacão americano sentir-se-ia com toda a certeza mais aconchegado. O abraço de Catarina era tudo o que precisava naquele momento.

Francisco percorre o corredor do serviço de Medicina Intensiva entregue ao negrume dos seus pensamentos, mais negros do que a camisa que albardava e do que a barba que pendia das suas faces de pavor. O próprio corredor, sem luz natural, parecia até mais sombrio que o habitual. Ao fundo exibia-se a porta do bloco operatório, que Catarina trespassaria para, em poucos minutos, abandonar o perfume da sua essência. Quando regressasse seria uma carcaça cujas entranhas os abutres haviam devorado.

Foi com alguma incredulidade que reconhece a figura de Frederico cruzando-se com ele na passagem que dava acesso aos cuidados intensivos.

- Francisco…lamento! Lamento tanto! Não consigo imaginar aquilo por que possas estar a passar! – disse, com sincera solidariedade e fácies igualmente carregado.

- Não, não podes imaginar! O que é que vieste aqui fazer? Vieste despedir-te da desdita? – continua Frederico, sempre à defesa.

- A Catarina é minha amiga! Também estou a sofrer!

- Imagino que estejas! – afirmou, com visível sarcasmo.

- Nunca existiu nada entre nós, se é essa a ideia que te consome! Posso-te garantir que não!

- O que é que isso me interessa neste momento, Frederico?!!! – questiona, aumentando o tom de voz.

- Desculpa, não queria ser inconveniente!

- Se queres mesmo ajudar, Frederico, se carregas tanto pesar como dizes sentir, usa o teu estatuto e impede aqueles abutres de lhe arrancarem o coração! Faz qualquer coisa, em vez de tentares convencer-me de algo que não interessa nada…

- A minha relação com Catarina interessa-me e muito! Não te vou negar que nutro por ela sentimentos muito nobres, sobretudo de dignidade e respeito, coisa que não parece estares a vislumbrar! Mas dadas as circunstâncias, vou relevar!

- É da minha mulher que estamos a falar, não da tua! Não me venhas falar de respeito numa altura destas! – retruque Francisco, ao que Frederico baixa os olhos ao chão. E continua:

- Se não vens tentar demover aqueles imbecis de a matarem, põe-te a andar daqui para fora!

- Conheces a legislação tão bem como eu! Não há registos! Não posso fazer nada, nem sequer sou marido dela! Não me podes cobrar isso! – afirmou Frederico, num tom controlado, na esperança de trazer Francisco à razão.

- Para que te serve então o curso de Medicina? Para tu e os da tua laia andarem para aí a pôr e a dispor da vida das pessoas?

- Eu não pertenço à equipa que diagnosticou a morte cerebral! Eu não sou neurocirurgião, nem sequer trabalho neste hospital! Não conheço a equipa e não tenho o direito de me imiscuir no trabalho dos meus colegas! Não estás a ser razoável Francisco!

- E tu, estavas a ser razoável quando te envolveste com a minha mulher? Responde Frederico! Vá, responde!!! – vocifera Francisco, abanando Frederico pelos ombros.

Naquele instante, passa a secretária do bloco operatório que fica espantada e incrédula a olhar a cena. Frederico desprende-se de Francisco e ambos se olham intimamente com os olhos mareados, durante segundos. Não conseguiu proferir nem mais uma palavra, antes de virar costas e seguir caminho. Sabia que, dissesse o que dissesse, Francisco não iria processar clara e precisamente a mensagem. Desde o casamento de Catarina, conhecia o marido da sua amiga como um homem sensato, calmo e ponderado. Aquela sua atitude de ataque só podia ser explicável pelo enorme desespero que carregava! E isso, ele conseguia entender bem!

Final possível...

Abril de 2013

Corria já o mês de Abril de 2013 e estava um dia resplandecente. O sol iluminava o orvalho repousado nas flores que adornavam as campas do cemitério do Toural, em Bragança, fazendo-as parecer mais vivas. Este lar de Paz, com cerca de 22000m2, dividido em 22 talhões, espaço apropriado para cerca de 3600 cadáveres, havia sido construído em 1858, mais de um século e meio atrás, mas a sua aparência estava consideravelmente bem preservada. O primeiro homem a ser sepultado, João Ferreira, havia morrido de amores por uma tal de Adalberta, e quando esta lhe deu com os pés, apaixonara-se por uma figueira e uma corda.

Tanto que havia sucedido desde o nascimento do Dinis e da Lara e do coma de Catarina. Desde que ouvira a voz de Frederico ao telefone naquela manhã tormentosa até à informação do neurocirurgião acerca da morte cerebral da sua amada, haviam-lhe ocorrido um turbilhão de emoções e de sentimentos capazes de o aniquilar por completo, não fora o compromisso de ter de cuidar dos tão adorados gémeos de ambos. Ainda depois disso, muitos acontecimentos marcaram o seu percurso até chegar àquele exacto momento.

Francisco segue pelo corredor do flóreo e bem cuidado cemitério acima, olhando as lápides laterais com curiosidade e carregando nos braços um fascinante ramo de rosas brancas e um livro em cuja capa se havia imprimido o título “Corpo sem Chão”. Parecia muito comovido. Supunha cheirar a morte, mas o perfume que inalava era de aprazível entorpecimento. No percurso, cruza-se com um homem gasto, sujo e muito curvado, cujos rasgões nas calças que suporta lhe deixam vislumbrar as cicatrizes ensanguentadas. O velho, à sua saudação, resmunga um bom-dia quase inaudível, enquanto encosta a enxada a um dos monumentos funerários. Depreende tratar-se do coveiro, homem que seguramente há-de ter devolvido à terra muitos sonhos por cumprir.

No limite, no local preciso que Serafim lhe havia indicado na conversa que havia tido com ele na noite do dia anterior, Francisco defronta-se com a lápide de Santa Amália. Ao contrário das circundantes, parecia abandonada, com resquícios de flores secas do seu funeral, poucos meses atrás, e algumas ervas aparentes confundindo-se com o desabrochar de margaridas que a Primavera de encarregara de fazer despontar.

Benzendo-se e ajoelhando-se, parece fazer-lhe uma prece de gratidão. Com efeito, o nosso protagonista acreditava religiosamente que todo o desenrolar da sua história de vida a partir do instante em que recebe a terrível notícia de Frederico, alguém que deixou de ver com desconfiança e que passou a admirar com profundo respeito, se apoiou no atendimento prodigioso ao seu íntimo pedido. A imagem de Santa Amália não o largara desde então. Até o sucesso do lançamento da sua recente obra “Corpo Sem Chão” considerava ter sido obra sua.

No regresso a Coimbra para ver os seus filhos recém-nascidos e na sua preocupação com o estado de saúde crítico da sua venerada mulher apenas lhe ocorria um pensamento: esperar que Santa Amália, que acabara de abandonar as lutas terrenas, convencesse o Divino e Nossa Senhora a Resgatarem Catarina do coma e a Deixarem-na viver, feliz, a seu lado e ao dos gémeos, algo que a própria sempre tanto almejou. Não haveria justiça na Terra se assim não sucedesse.

Apesar das histórias rocambolescas que punham em causa todo o miraculoso caso de Amália, transformando-o numa fraude, custava-lhe a aceitar que este fosse apoiado no nada, assim como o constrangia admitir que o Padre Santos, que conhecera como um homem bom e generoso e com o qual havia convivido nos seus tempos de infância, quando era acólito, estivesse envolvido numa farsa desta natureza para obter lucro económico. Só lhe restava uma saída: acreditar que tinha havido definitivamente um milagre, tal como o houvera seguramente para com a sua esposa.

Efectivamente, a própria Catarina havia descrito a imagem de uma mulher que a tinha auxiliado enquanto permanecia presa ao coma. A descrição desta imagem reproduz fielmente a representação que Francisco retém de Santa Amália no seu leito de morte, quando a visitou por ocasião do seu velório.

E como Catarina conseguiu sair do coma no preciso momento em que o bisturi se preparava para lhe rasgar o coração, ninguém conseguia justificar, nem a própria medicina que se tinha encarregue de prognosticar o seu fim. Mas a verdade é que ela estava viva! E sã! Carregada de renovadas energias e sorrisos com que prendava todos os dias os seus rebentos e premiava o âmago do seu adorado consorte, bem como o dos seus familiares e amigos. Frederico tomaria sempre parte no seu coração, mas Francisco não se incomodava com a partilha: a essência de Catarina era, a seu ver, tão grandiosa e sublime que nela haveria amor bastante para os dois! A ele, bastar-lhe-ia vê-la sorrir todos os dias!

Nem um milhão de rosas chegariam para mostrar a sua infinita gratidão a Santa Amália, mas as palavras contidas no seu livro, quando ensopadas pela chuva, haveriam de descer à terra e tocar-lhe o corpo defunto para a fazer ressurgir, eternizando-a. De onde ela estivesse, haveria certamente de reconhecer este gesto.

Francisco, preso nas suas preces, oferece ao túmulo o livro e as rosas. Benze-se em memória da sua depositária e dirige-se por fim à entrada do cemitério. Fecha as portas rodando jubiloso a chave do seu coração: para trás, ficava todo um percurso e um auspicioso destino.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Horizonte mareante


Setembro de 2011
Frederico entra na sala de reuniões do serviço de Cirurgia do IPO de Coimbra, acompanhado de mais dois colegas, onde Catarina se encontrava para discutir a situação clínica psicológica de uma paciente sua. Era útil e indispensável que todos os elementos da equipa multidisciplinar estivessem presentes, no sentido de, juntos, encontrarem uma solução clínica que visasse o menor sofrimento físico e psíquico para aquela que iria ser amputada de um seio e vislumbraria a sua imagem corporal pervertida e ceifado o seu auto-conceito. O cirurgião responsável, Dr. Loureiro, apresenta o Dr. Frederico, que viria integrar a equipa cirúrgica a partir daquele dia.
Era impossível não dar pela presença de Frederico: homem de cerca de quarenta anos, porte elegante, alto, magro, cabelo curto castanho, salpicado por cabelos brancos que lhe conferiam um certo charme e um sorriso genuíno e encantador. Com o tempo, Frederico foi-se revelando também um homem humilde, calmo, seguro, simpático e sensível, perspicaz e admirável, muito persistente e com grande envolvimento emocional. Estas características não passaram despercebidas a Catarina. Sem se dar conta, aquele homem enchia-lhe o coração de uma ternura e uma admiração imensas que, a priori, poderiam não ser consideradas vulgares aos olhos de um observador comum, não fosse o facto de Catarina ser igualmente uma pessoa sensível e extrovertida, com muito afecto para partilhar com quem estivesse na disposição de retribui-lo. Com alguns limites, bem entendido, não vá o leitor pensar tratar-se de uma galdéria!
Descrevemos Catarina como uma mulher trintona, com aspecto de adolescente rebelde, inteligente, empolgante, viciada no trabalho e constantemente insatisfeita na busca da perfeição. De baixa estatura, olhos castanhos grandes e cabelos castanhos longos, exibia um sorriso e um olhar penetrante de um modo que o interlocutor dificilmente deixava de a notar sempre que se fazia presente. De espírito livre e independente, gostava de trabalhar em equipa e irradiava boa disposição, salvo raras excepções, quando o requinte e a mestria lhe fugiam do controlo. Impulsiva e imprevisível, gostava de inovar e não ficar presa à rotina, algo que a aborrecia imenso. Sabia ser um tanto incómoda e provocadora quando as coisas não lhe corriam de feição, pois considerava que todo o seu empenho deveria ser reconhecido e recompensado. Nem sempre assim sucedia e, ocasionalmente, a impulsividade e a impaciência vinham defumar a imagem encantadora que conquistava, com justiça e dignidade, junto daqueles que haviam sentido o prazer de cruzar-se consigo. Depois, ainda que ciente das suas capacidades e competências, revelava-se extremamente humilde, capaz de reconhecer os seus ímpetos e persistindo no resgate do perdão daqueles a quem supostamente beliscava. Era assim, e foi assim, com Frederico, como poderemos constatar ao longo da história.
Criativa, fazia um jogo de palavras que não era trivial. Francisco, seu namorado e com quem viera a casar, considerava que Catarina podia muito bem ser, para além de psicóloga e escritora, uma diplomata no Parlamento, considerando o seu dom da oratória. Bondade sua, pensava ela, que seguramente haveria de ficar tão ansiosa na hora de falar aos deputados que bloquearia com toda a certeza quando se sentisse o centro das atenções. Era, de facto, a ansiedade que a traía sempre. Em quase todas as situações.
Catarina e Frederico trabalhavam lado a lado havia cerca de três anos com um objectivo comum: melhorar a condição física e psicológica dos seus pacientes. E pode mesmo dizer-se que a sua relação laboral era extremamente aprazível, assente no respeito e dignidade do outro enquanto pessoa e profissional no seu ramo clínico.
Algum tempo após a chegada de Frederico ao serviço, este diz-lhe que vai ser pai. Na sequência de um parto algo conturbado, a sua criança acaba por ficar nos cuidados intensivos neonatais do Hospital Pediátrico de Coimbra durante alguns meses. Catarina nunca foi indiferente ao sofrimento deste pai, manifestando-lhe o seu apoio e solidariedade, fazendo-se sempre presente até ter recuperado, ao que Frederico sempre respondeu com gratidão. Daqui resultou uma evolução da relação de ambos, deixando para trás o estatuto de “conhecidos” ou de “colegas de serviço” para assumirem a condição de amigos.
Frederico acabou mesmo por ser convidado e testemunha do enlace matrimonial de Catarina e Francisco. E foi também espectador da sua funesta gravidez. Terá sido Frederico uma das primeiras pessoas a ter conhecimento do seu estado de graça. Assim como o foi quando o perdeu. E foi-o também quando Catarina publicou o seu primeiro livro poético, algo que tanto ambicionava e conseguiu consubstanciar. Frederico esteve sempre na vanguarda do seu horizonte, logo a seguir ao marido, que muito amava.
A história de Catarina e Frederico faz jus às palavras de Saint Exúpery: "Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós". Efectivamente, Frederico tinha deixado de si a Catarina, que ela albergou religiosamente, mas ainda assim não conseguia aceitar que ele não estivesse presente num momento tão importante para ela como o do lançamento do seu livro. Depois disso, uma sucessão de acontecimentos atiraram os dois protagonistas para uma situação se algum litígio. Foi nesta sequência de enredos que viemos a descobrir Catarina em frente ao clube de andebol onde Frederico viera a exercer Medicina do Desporto a tempo parcial.
Hoje é o seu dia de folga. A esposa, Marta, cedeu à condição laboral e a filha foi entregue aos cuidados da ama. Frederico sentiu necessidade de desfrutar de um tempo seu. Junto ao mar, sentia sempre uma paz de espírito indescritível: o vaivém das ondas não só trazia e levava memórias passadas como aspirações renovadas. Era sempre este cenário que procurava quando necessitava de alguma reclusão. Curiosamente, era também o local de eleição de Catarina, embora nunca aí tivessem estado juntos, como nunca estiveram juntos e a sós em lado nenhum. Mas conseguia senti-la.
O autógrafo imprimido no livro que a sua mão lhe ofertara remetia para o seu desejo em querer partilhar mais do seu sentir, mas cingia-se a oferecer-lhe o mais belo dos silêncios, o silêncio perfumado com o seu sorriso, adornado com profunda admiração e amizade sincera. Mas havia mais, havia muito mais nas entrelinhas, que Frederico se escusava a interpretar. Sentia que a ligação de ambos estava a tornar-se perigosa, motivo porque lhe havia pedido para se restringirem a uma relação profissional, a qual desde sempre se havia revelado muito leal e salutar. Esperava que assim continuasse.
Mas a lógica é traidora do coração sendo que este tem o dom de elevar-se no seu diálogo com a razão. Frederico duvidava que Catarina conseguisse manter-se à distância. Nem ele tampouco conseguia desvanecer o som que lhe ecoava nos ouvidos desde a última vez que a vira e lhe pediu para se afastar: “Gosto muito de ti”.
Frederico ergue o olhar que repousava nas palavras sedutoras de sua cativada rendendo-o à linha do horizonte mareante:
- Também eu, Catarina! Também eu gosto muito de ti! – mas isso, Frederico não podia confessar-lhe.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O chão debaixo de si

Dezembro de 2012

Francisco entregara-se à alvura do seu leito de solteiro passava já das quatro da madrugada. Já quase havia esquecido o quão singular era dormir naquele quarto. Desde que casara , havia mais de dois anos atrás, mudara-se para o leito matrimonial do quarto do lado, sempre que reconhecia a casa dos pais. Havia-os prevenido telefonicamente que viria, ainda no percurso de Coimbra/Bragança, mas havia-lhes dito também que talvez chegasse a Vilarchão muito tarde, para não esperarem por ele, e que lhe deixassem então a porta aberta.

O ponteiro do relógio ultrapassava as duas quando Francisco abandona a capital de distrito. Estava exausto e tinha ainda cerca de oitenta quilómetros pela frente. Não fosse o facto de ter prevenido os pais e da vontade de estar com eles, provavelmente hospedar-se-ia numa pensão por uma noite e ali ficaria para o dia seguinte. Assim, teria de voltar logo após o pequeno-almoço, que esperava ser agradável, na companhia dos seus simpáticos progenitores, ambos a rasar a casa dos setenta anos. Sabia que estes ficariam também muito felizes por vê-lo! Haveriam de querer saber uma série de coisas, nomeadamente sobre Catarina e a previsível e tão esperada chegada dos netos! Estes haviam também muito padecido com o primeiro malogro, pelo que desta vez os ânimos de todos eram muito mais comedidos! Ainda assim, notavam-se muito expectantes!

Tal como previra, à sua chegada os pais encontravam-se ainda despertos. Seria, para estes, impensável não acolherem o seu tão reverenciado filho! Não era todos os dias que o viam! E depois, estavam também muito curiosos em relação aos factos relacionados com o falecimento de Santa Amália. Faziam intenções de ir ao funeral no dia seguinte. Não se falava mesmo de outro assunto nas ruas da aldeia. Falava-se mesmo da possibilidade de a Câmara Municipal disponibilizar um autocarro para os interessados em participar nas cerimónias fúnebres. Os mais velhos consideravam um desperdício de verbas, uma vez que a dita Santa se havia desligado por completo das suas origens, das quais, ao que tudo indicava, sentia vergonha pelo seu passado. Era um tal frenesi que os poucos octogenários e nonagenários ainda no seu pleno juízo, não se cansavam de evocar memórias de acontecimentos e velhas histórias retratadas na época. Alguns manifestavam também vontade em ir, mais pela curiosidade, não fossem as suas pernas atraiçoa-los e portanto seria muito mais sensato ficar de guarda à aldeia, contando com os relatos daqueles que tivessem a boa-vontade e a paciência de contar os pormenores a um velho.

- Então meu filho, como tu estás? Parece que foste desenterrado! – que aos olhos de uma mãe, a preocupação é sempre algo exagerada – Tu tens fome? Queres comer alguma coisa?

Ao seu consentimento, Mavilde apressa-se a preparar um torrada nas brasas quase fenecidas da lareira de inverno e uma chávena de café com leite ao seu desabrocho, como na altura em que ele frequentava a casa como residente permanente. Muitas vezes se esquecia que o seu rebento tinha crescido e tinha já uma família própria. Fazia questão de primar por esses pequenos mimos, dos quais não prescindia, nem a favor da mulher com quem havia decidido partilhar o resto dos seus dias.

- Então conta-nos cá: como ficaram a Catarina e os nossos netinhos ? – questiona Ambrósio, pai de Francisco, com aquele brilho nos olhos que lhe era tão característico sempre que falava da família.

- Estavam bem antes de sair de casa, apesar de que Catarina está cada vez mais pesada e tem andado com as tensões descontroladas e com as pernas muito inchadas. Se bem que nos últimos dias tem estado melhor. Tem também sofrido muito com dores na coluna. Já são trinta e seis semanas…até às quarenta e duas podem nascer a qualquer momento, mas estou em crer que começaremos a mudar fraldas antes…- disse, carregando-se-lhe o semblante de imediato.

- Deves estar muito preocupado, filho, mas deixa que lá por ter acontecido o que aconteceu não quer dizer que agora aconteça de novo – disse a mãe, numa tentativa de lhe resgatar o sorriso.

- Claro, tem razão! Estou também muito cansado. A viagem foi longa e depois de um dia de trabalho!!!

- Olha lá, então e o velório, sempre lá estiveste? Muita gente, calculo! – Indaga o pai com muita curiosidade, enquanto Francisco absorve o café com leite quente e consome a deliciosa torrada preparada carinhosamente pela mãe.

- Para minha surpresa, nem por isso! Não mais do que um velório de um velhinho cá na aldeia! Tentei entrevistar algumas pessoas idosas que se encontravam no exterior e que se escusaram a tecer qualquer comentário no que toca ao passado da sua alegada santidade, talvez por respeito à sua memória. Os mais novos, esses nem sequer uma ideia faziam do que eu lhes estava a perguntar…deviam achar que era um louco!

- É natural Francisco! Nas cidades já se sabe como é! Não é como na aldeia que toda a gente sabe e quer saber a vida de toda a gente. A Santa Amália foi para lá há mais de sessenta anos, por volta de mil novecentos e cinquenta e poucos! E não voltou cá mais! Se perguntares a alguém de uma geração depois da tua se calhar nem nunca ouviu falar dela nem dos milagres que recebeu. Os do meu tempo, mal nos lembramos, éramos uns catraios. E os mais velhos ou já morreram ou estão caducos! - conjectura o pai de Francisco.

- Não viste lá a ti Joaquina e o ti Manel? Não sei se ela se dava muito bem com a irmã, mas não deixariam de ir numa hora destas… - supõe Mavilde.

- Não, não os vi. Provavelmente só irão ao funeral.

- A propósito, amanhã tínhamos intenções de ir. Vamos dar boleia à ti Francisca e ao ti António. Falam até que vai haver uma carreira que a Câmara pôs ao dispor para quem quisesse ir, mas nós cá levamos o nosso carro para irmos e virmos quando nos apetecer – declara o pai que se encaminha na direcção da porta que dá acesso às escadas para o seu quarto no primeiro andar.

- Também não sei se a carreira encherá – afirma a mãe. – É tempo de azeitona e está muito frio. Há bocado quando fui ao terço, que se rezou pela alma dela, não me pareceu que as pessoas estivessem muito entusiasmadas. E as que forem, só devem ir pela curiosidade!

- Já se passaram muitos anos, Mavilde! Era o que eu dizia há pouco! Achas que as pessoas largam os seus afazeres para irem ao funeral de uma pessoa que nem conheceram e que, segundo se consta, tudo o que aconteceu não passou de uma farsa?

- Não sei que te diga Ambrósio, mas lá que alguma coisa houve, houve! E tu conheces as histórias tão bem como eu de o meu pai e os do tempo dele as contarem – lembra Mavilde, evocando a memória do ti Zé das Estevas.

Francisco termina a sua bebida quente e de estômago mais confortado, alegando um enorme cansaço, despede-se dos pais declarando que partirá de novo para a capital brigantina logo após o pequeno-almoço. Teria que se encontrar com um seu colega e amigo, da Rádio Brigantina, com quem iria almoçar antes de fazer a cobertura das cerimónias fúnebres de Amália. Com isto, o relógio por cima da lareira já havia batido as quatro.

Cerca das sete e pouco da manhã, ao rugir dos tractores que se encaminhavam para as terras olivícolas para a apanha da azeitona, Francisco acorda sobressaltado por uma angústia difícil de descrever. Dá-se então conta que no seu cansaço e empolgamento com o falecimento de Amália, se havia esquecido de colocar a bateria do seu telemóvel a carregar e de desejar as boas noites a Catarina. Num ímpeto, salta do leito e liga o aparelho à corrente. Mal o código é reconhecido e o dispositivo começa a tocar, reconhecendo o número de Catarina no visor:

- Olá amor…desculpa, fiquei sem bateria e já cheguei a casa dos meus pais muito tarde: não te quis acordar! - desculpabiliza-se Francisco antes de ser bombardeado com cobranças por parte da mulher, que adorava, é certo, mas que sabia ser um tanto provocadora e inconveniente quando as coisas não lhe corriam de feição.

- Francisco, sou o Frederico! – identificou-se, um pouco constrangido.

-Frederico?!!! Mas o que é que tu estás a fazer com o telemóvel da minha mulher? – questiona Francisco, num tom visivelmente irritado.

Sabia que Frederico e Catarina nutriam uma relação especial e chegou muitas vezes a sentir ciúmes deste pelo cuidado que a mulher lhe dedicava sem razão aparente! Ou talvez até houvesse razão, dúvida que o consumia intimamente, mas que nunca tinha conseguido esclarecer. Lembrava-se de um dia os ter encontrado à saída de um café perto de casa, num abraço muito cúmplice, mas ambos haviam sempre negado qualquer luxúria que pusesse em causa os seus enlaces matrimoniais. Marta, a mulher de Frederico, havia sentido o mesmo numa ocasião em que detectou mensagens de Catarina, a seu ver comprometedoras, no telemóvel do marido. A sua reacção veio mesmo a abalar, na altura, a relação entre Catarina e Frederico. Mas o que ambos sentiam em relação ao outro era muito consistente e, mesmo sem nunca haverem apunhalado libidinosamente os respectivos cônjuges, tanto Marta como Francisco se sentiam traídos.

- Francisco, não é hora para agressões! Catarina e eu passámos a noite a contactar-te! Tens que vir imediatamente para cá, estejas aonde estiveres! Os teus bebés precisam de ti! – Ordena Frederico num tom aparentemente calmo e resoluto.

- O que é que se passa com os meus filhos?

- Vem rapidamente! Os vossos filhos nasceram e estão bem…ao cuidado das enfermeiras - Frederico fez uma pausa. Não sabia como informar o seu alegado rival de uma fatalidade que o consumia também a ele…

- E Catarina? O que se passa?! – e ouvindo silencio do outro lado da linha - Fala Frederico!!! – Grita Francisco, que começa a sentir o chão a ondular debaixo de si…

- Está em coma… - disse, com um nó na garganta que só começou a consumir -se depois de desligar a chamada e de as lágrimas lhe impregnarem o rosto. Terá sido uma das poucas situações em que Frederico chorou.